Ne Jah
Artistas bairristas criados e influenciados por um meio unido, mas problemático.
Os músicos juntaram-se no single Entre o povo que eu nasci e utilizaram o rap para completar a visão que cada um tem daquilo que os rodeia. Ne Jah e V1ruz, nascidos na pobreza, descobriram-se no hip-hop e construíram uma carreira. Falam do bairro, do sistema e da verdade, exprimem sem mimos para que no mundo existam seres esclarecidos. Rappers que seguem o que sentem, que apontam o dedo e que também mostram o lado positivo. Escrevem com a alma para consciencializar o público e inspiram-se na revolta para fazer rap. Na terceira edição do evento Hip-hop Sessions, em Campolide, desenvolvido pela associação Sons à Margem, a dupla conversou connosco sobre aquilo que vive e aquilo que pensa.
Charivari – Como é que o hip-hop aconteceu nas vossas vidas?
Ne Jah: Para mim o hip-hop começou na escola. Lembro-me que ainda estava no sétimo ano, depois de muitos sétimos anos chumbados, quando comecei a fazer freestyle.
Já ouvia rap, mas mais antigo, e por acaso nunca fui de seguir a moda. Eu consumia sobretudo o rap que tivesse melodia, porque era aquele que me chamava mais a atenção. Depois apareceram rapazes, na escola, a fazer rap de improviso em combates verbais. O hip-hop começou como uma brincadeira e de repente estava no mundo do rap, a escrever. Neste momento posso não estar tão ativo, porque estou à procura de estabilizar a minha vida. Por mais que eu ache que já estou há algum tempo no movimento e que devia relaxar, cada vez que eu lanço uma música há público a aderir, a mostrar muito carinho.
V1ruz: Eu sou fruto do ambiente. Como qualquer artista, comecei como observador e uma pessoa que tenta absorver todo o tipo de informação para poder criar as suas próprias coisas. Nasci nos anos 80, nos anos 90 o hip-hop estava a rebentar e a ter a sua geração de ouro. Lembro-me que com cerca de treze anos o hip-hop começava a chegar ao bairro. Foi esse novo ambiente que me levou a querer fazer parte do movimento e dizer “eu gosto mesmo disto”. No princípio foi ver os outros, gostar e começar a fazer as minhas próprias coisas, de uma forma amadora, uma autêntica brincadeira. Depois de estar dois anos parado, acordei, olhei para trás e vi que não tinha feito nada de interessante na minha vida. Tinha sido filho, já era pai, mas sentia que amanhã podia sucumbir e não tinha deixado a minha identidade, o meu rasto específico. Sentia que ia explodir se continuasse parado no tempo sem construir aquilo que mais gosto.
Ch – O que é que vos inspira para escrever e fazer o vosso rap?
Ne Jah: Não sou muito de seguir a moda, sou mais de seguir o que eu sinto. Para mim é muito importante que o meu rap também seja assim ou não estaria a ser eu. Eu sempre vivi em bairros sociais, nasci nas barracas e depois fui para os prédios. Problemático ou não, é bairro, mas na mudança notei uma grande diferença que me inspirou muito. E é um tema que hoje utilizo muito para falar de como as coisas mudaram, simplesmente afastaram-nos do bairro original. Puseram-nos nos prédios sociais da câmara, totalmente isolados. Essa revolta inspira-me muito. E não só, por exemplo, quando estou na estação à espera de um comboio, vejo uma senhora idosa e rapazes a faltarem-lhe ao respeito. Isso toca-me, observar o incorreto inspira-me. No início, quando fazia freestyle, o que viesse à cabeça, desde que rimasse, estava bom. Mas a escrever temos de ser mais conscientes, porque hoje sinto-me responsável pelos meus seguidores. Até porque há crianças a ouvir rap, antigamente podia não haver tanto, mas hoje, nós rappers, somos uma referência para essas crianças e temos que dar o exemplo.
V1ruz: Eu nem consigo explicar onde é que eu me inspiro. Eu sempre fui extremamente pobre, nasci aqui no bairro quando era outro bairro, as casas eram barracas sem grandes condições. Isso tem uma grande influência naquilo que eu sou hoje, não só no que eu escrevo. Toda a minha vida é feita através da minha experiência empírica, que foi a pobreza, foi não ter dinheiro para lápis e canetas. Sou uma pessoa que lê muito e leio todo o tipo de coisas, informo-me sobre todo o tipo de assuntos e, hoje, raramente oiço muito hip-hop.
Quero ter um estilo muito próprio e acredito que se consumir muito hip-hop vou acabar por ter influências deste meio. Vou lendo, pensando e tento afastar-me um bocado. Quero promover a igualdade, não tenho paradigmas e tento escrever sobre tudo. Tento passar o melhor de mim, que nem sempre é o mais positivo. Não sou um ser emancipado, mas tento ser um ser esclarecido e tornar o mundo num lugar sem distorções.
Ch – Qual a vossa identidade no rap?
Ne Jah: A identidade da minha música são as crianças. Eu acho que devemos manter a criança que há em nós, eu próprio ainda tenho muitas coisas feias e bonitas para ver. Muitas pessoas para ensinar e outras com quem aprender. Através da energia chega-se às pessoas e eu uso a minha energia no rap. Eu sempre gostei do rap melódico, a mim cativa-me e acho que vai cativar mais pessoas. A melodia pode puxar o público para a mensagem que eu quero transmitir. Eu segui, ao que eu prefiro chamar de rap roots, tal como existe o reggae roots. É algo com mais positivismo e feeling, porque o rap também dá para dançar, basta sentirmos. Rap ou reggae é música. Eu não sigo a moda, às vezes faço música que pode entrar na moda e ainda bem, é sinal que as pessoas aderem. Por exemplo, a Karta
panha rapa é uma música que não atingiu o sucesso de Sem mimos, mas que eu gosto em particular porque falo sobre os rapazes que cresceram comigo, com quem eu aprendi a viver. Os nomes que eu digo ali não é à toa, são pessoas que fazem parte da minha realidade. E o que me puxa mais é o sentimento, o carisma, a honra.
V1ruz: Eu era um MC de freestyle, um MC que fala muito e fala na altura. Não pensa muito, não guarda.
Eu era um grande MC de batalha verbal, de dizer no momento aquilo que pensava. Com o tempo compreendi que isso me prejudicava para escrever, porque eu não conseguia amadurecer os meus pensamentos. E eu queria criar uma boa letra, uma boa métrica e uma boa composição. Isso fez com que alterasse a minha maneira de trabalhar e a metodologia de criar. Antes havia muita influência daqui e dali, neste trabalho eu sinto que me estou a libertar disso. Quero que tenha uma pequena retrospetiva do que eu sinto em relação à política, ao amor e às situações do dia-a-dia. Eu sinto que sempre fui raw, apesar de escrever de forma profunda, gosto de um beat mexido e gosto de rockalhar. Costumo dizer que não existem bons ou maus temas, existe uma boa forma de desenvolver um tema. Podes pegar num tema medíocre, que não tem nenhum interesse social e torná-lo um tema interessante em que contas uma história ou explicas algo.
Ch – Neste momento da carreira têm liberdade para fazerem as vossas escolhas?
V1ruz: Tudo se limita a partir do momento em que seleccionas os teus Objectivos e onde queres chegar com a carreira. Se há uma coisa que eu pude fazer na minha carreira, pequenina que é, foi escolher os meus objectivos e selecioná-los com clareza. Foi perceber o que eu queria e não queria do rap e perceber o que viria por arrasto, o sucesso para mim vem por arrasto. Eu sempre fui livre e fiz tudo de acordo com a minha convicção, nem sempre resultou bem, mas serve de aprendizagem. Sinto que tenho potencial e que o meu caminho está claro, basta-me desenvolvê-lo e ter os pés assentes no chão desta indústria. Consigo fazer a música que eu quero, com quem eu quero, dizer se tenho interesse ou não.
Eu posso não atingir muito mais, mas a minha música já chega a pessoas suficientes para ter concertos, para pagar o álbum e a minha vida. Claro que todos queremos sempre mais, eu sou um jovem ambicioso, mas não me foco só nisso. Nos dois últimos anos tenho construído a minha carreira de uma forma lenta, mas estável e segura.
Ne Jah: Eu faço o meu trabalho para mim, de forma independente. Acho que as agências e editoras acabam por matar o MC que existe em nós. Eu faço as minhas escolhas e tento agradar-me para agradar o público. O Sem mimos nasceu porque conseguimos dizer a verdade, acho que isso despertou a atenção dos bairros porque a reconheceram. Eu preferia não conhecer, mas já conheço a maldade, a ganância e o poder. Por isso não sou livre, mas ainda quero ser. Hoje eu sigo o Rastafari, não religiosamente, mas acho que vai contribuir muito para a minha vida e impedir-me de cometer alguns erros que cometi no passado. Enquanto respirar, vou ter positividade ao máximo. Canto sempre em crioulo, mas também quero começar a cantar em português. O rap crioulo tem mais a ver com a cultura que eu vivi. Mas já que consegui conquistar a comunidade cabo-verdiana, também quero que a comunidade portuguesa consiga interpretar aquilo que eu digo.
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